O melhor livro de aventuras é nossa própria experiência pessoal. Mas o real desafio é transpor tudo isso para o universo ficcional.
Imagem: Imgur
Hoje, venho aqui falar para vocês sobre um processo que ocorreu comigo ao longo da última campanha de D&D que mestrei. Farei um breve resumo (sem spoilers), apenas para contextualizar o leitor sobre o enredo geral.
Quando começamos a aventura “Princes of the Apocalypse” (Príncipes do Apocalipse), já estávamos jogando há aproximadamente 2 anos com os mesmos personagens. Tequila, Kira e Erky já haviam passado pelos enredos de “Lost Mine of Phandelver” (Mina Perdida de Phandelver), “Hoard of the Dragon Queen” (O Tesouro da Rainha Dragão) e “The Rise of Tiamat” (A Ascensão de Tiamat). Todas aventuras oficiais da Wizards of the Coast. Além disso, os “quartéis-generais” dos personagens eram, curiosamente, as cidades de Phandalin e Thundertree (ambas presentes em “Lost Mine of Phandelver”).
O começo da aventura se daria no nível 16 e levaria os personagens até o tão sonhado nível 20. Mas logo aí já começam as dificuldades para o mestre. Como apresentar uma aventura desafiadora para os personagens? Como fazer com que eles se sintam compelidos a derrotar mais este mal que ameaça destruir o continente? E, principalmente, como dar aos jogadores a real dimensão de uma aventura até nível 20?
Minha primeira decisão dentro da aventura foi “destruir” tudo que eles já haviam construído após 10 anos de calmaria, dando uma motivação impossível de ser ignorada pelos personagens. A partir daí, surgiu uma espiral de problemas a serem resolvidos. Tanto para os personagens quanto para o mestre.
Imagine tudo que seu personagem pode ter conquistado até o nível 16: itens mágicos, cidades, construções, cargos de importância política para a região e aliados poderosos. Tudo isso sendo explodido logo de cara em sua primeira sessão. Aí está sua motivação. Todos os eventos subsequentes foram fruto da sensação dos personagens perante a perda de suas conquistas e da busca por redenção. E é sobre isso que quero falar neste post.
É engraçado imaginar que uma “simples” aventura pode se tornar algo tão pessoal como o “Princes of the Apocalypse” se tornou. Quando comecei a conduzir esta aventura, nunca imaginei que ela se tornaria tão marcante para mim como pessoa. Cheguei ao ponto de não querer terminar o arco narrativo por medo de não conseguir “juntar as peças do quebra-cabeça” e de me decepcionar com o final. Mas fui percebendo que estes medos e incertezas que eu sentia pareciam estar sendo passado para os personagens dentro da história. Lentamente, fui percebendo que eu refletia meus problemas no arco narrativo e que estes tomavam vida no corpo das personagens; e, aqui, está a grande virada.
A partir do momento em que percebi este processo, comecei a racionalizar a construção das ações que nos levou até aquele ponto. Assim, percebi que despir os personagens de suas conquistas logo no começo da aventura permitiu que tanto os jogadores quanto o mestre tivessem tomadas de decisões que dificilmente seguiriam o arco narrativo da aventura original. Fato que fez com que eu “explodisse o livro de aventura”.
Após a racionalização desse processo que estava acontecendo, vi que eu poderia utilizar meus sentimentos, anseios e medos mascarados e refleti-los na aventura. O que aconteceu foi que, a partir do momento em que deixei de tratar meus personagens como figuras alegóricas e fictícias e comecei a trazer para eles reflexões reais de meus pensamentos sobre a vida e a morte (pensamentos recorrentes em minha mente e minhas próprias aflições), a história ganhou mais vida do que nunca.
É importante ressaltar que, para que estas reflexões sobre a vida e a morte tomassem corpo, um personagem (Erky) precisou morrer ao longo da aventura. Mas, ao invés de simplesmente removê-lo do jogo como mandam as regras, propus um acordo com alguns deuses de Faerûn. “Ascenda para outros planos agora e ajude seus amigos de uma posição superior” ou “continue com sua jornada mundana por enquanto. Mas, ao fim dela, você será julgado por suas ações de maneira extremamente severa”.
Ao longo da narrativa, este conflito mudou completamente o enredo original e as escolhas dos personagens. Pois, para conseguir sua redenção, Erky tinha uma escolha extremamente difícil em suas mãos. Então, ao escolher ajudar seus companheiros em sua missão, abrindo mão de uma vida relativamente tranquila em outros planos, Erky trouxe um olhar dos deuses perante os aventureiros, o que abriu um novo leque de acontecimentos.
Ao longo da aventura, eles não sabiam, mas não estavam jogando uma aventura escrita e publicada, e sim uma versão mutante, amorfa e sempre em desenvolvimento dos meus próprios medos e desejos. Não digo que isso funcione em qualquer situação ou qualquer mesa, mas é algo que pode ser incluído, em algum nível, à qualquer aventura. Pois o que é o RPG senão uma reedição de nossa sociedade, com seus medos, desejos e anseios?
Não cabe aqui descrever por completo os acontecimentos da aventura (fica talvez para um outros post), mas todas as tomadas de decisões levaram a um único desfecho final possível: o retorno a onde tudo começou.
Se a aventura se iniciou com a cidade de Phandalin sendo destruída, ela só poderia terminar com alguma forma de redenção para a cidade e para tudo que ela significava para os personagens. Todos os conflitos pessoais criados, os itens mágicos perdidos e os aliados derrotados serviram para que tudo se tornasse extremamente pessoal para os personagens naquela “última batalha”. Mas foi nas entrelinhas e no sub-consciente que tentei trazer para estes conflitos ficcionais um fundo de verdade, com sensações, reflexões e incertezas geradas por minha própria experiência pessoal.
Não estou tentando avaliar aqui a condução do arco narrativo, nem se a aventura é bem balanceada, ou qualquer outro aspecto burocrático ou mecânico, mas como nossas próprias experiências pessoais podem, e devem, fazer parte da construção deste universo ficcional.
Quando a aventura começou, eu tinha as mesmas expectativas de aventuras anteriores… Aquele velho arco narrativo do RPG, no qual há uma situação problema que precisa ser resolvida e cabe aos personagens lidar com tudo e todos em busca de uma solução. Bom, na verdade essa parte continuou acontecendo, mas a relação que criei com a aventura foi única.
É um fato que, para entender essa relação, é preciso dizer que em minha vida pessoal eu estava passando por uma série de dificuldades (como toda pessoa viva na Terra), mas, de alguma forma, além de se tornar uma válvula de escape para meus problemas, esta aventura me ensinou a lidar também com os meus medos e anseios como pessoa.
Acredito que isso tenha muito a ver com a relação, em grande parte destrutiva, que criei com o enredo e o desafio de “abrir mão”, como mestre, das certezas concebidas no livro. Em muitos aspectos, talvez até subconscientes, a aventura levou os personagens à uma espiral de problemas e enigmas que pareciam não ter uma solução aparente e, curiosamente, eu via meus problemas pessoais dessa mesma maneira.
Foi só quando eu me libertei do livro e vim para o mundo real que consegui fazer a aventura “sair do papel” e, quando isso aconteceu, percebi o quanto ela foi importante para mim. Não como mestre, mas como pessoa, pois através do RPG fui capaz de ter um outro ponto de vista sob meus medos e anseios mais profundos e aprender a lidar com eles em meu dia a dia.
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