Um guia para introduzir facções e guildas no seu RPG de Mesa e acrescentar o jogo político às suas sessões!
Imagem: Cristian AC
Os mundos da ficção e da fantasia estão recheados de facções. Elas podem ser famílias, como Starks e Lannisters; gangues de criminosos, como os Peaky Blinders e Sabinis; ou mesmo organizações extraordinárias, como os X-Men e a Irmandade de Mutantes. Fato é que, em suas respectivas histórias, os conflitos entre essas alianças criam tensão, drama e consequências que mantém o enredo em movimento.
Da mesma forma, muitos cenários de RPG de Mesa trazem facções como parte de suas mitologias. Do Enclave Esmeralda dos Reinos Esquecidos ao Consórcio Áspide nos Mundos do Pacto, temos uma infinidade de possíveis alianças, rivalidades e conflitos para explorar a cada sessão de jogo.
Contudo, é muito comum que, na prática, as relações entre diferentes facções acabem se tornando um tanto maniqueístas, dividindo o mundo entre “Bem” e “Mal” - dois polos opostos e incompatíveis. Por conta disso, a maior parte dos conflitos é resolvida por meio de combate, fazendo com que o jogo de interesses entre facções ocorra de maneira superficial.
Inspirado por essa dificuldade tão comum entre os(as) Mestres de RPG (e pela campanha de Blades in the Dark que estamos jogando aqui na Torre), decidi destrinchar algumas diretrizes básicas para adicionar mais complexidade às relações políticas e sociais das personagens!
Espero que, com essas dicas, você consiga acrescentar uma pitada de intriga e política nas suas aventuras - ou mesmo criar uma campanha totalmente focada nisso!
Tudo pronto? Então vamos começar falando sobre...
A Tensão Central
Quase toda história que envolva relações políticas, seja em uma aventura de RPG ou não, parte de uma tensão central. Essa tensão é o que Matt Colville descreve como a “a força motora por trás dos conflitos do mundo”, ou seja, um aspecto do cenário que cria conflitos de interesses.
A tensão central pode ser uma disputa por território, oposições relacionadas a crenças religiosas, ou até mesmo temas como pobreza e desemprego. O importante é que a tensão crie divergências de opiniões e objetivos entre diferentes grupos de pessoas, além de consequências práticas para cada um dos grupos.
Na nossa atual campanha de Blades in the Dark, a história foi construída com a xenofobia como tensão central. Isso não significa que todas as sessões ou enredos que emergiram a partir daí estão diretamente ligados à xenofobia, mas que acontecimentos relacionados à xenofobia estão causando conflitos no cenário.
No jogo em questão, uma das principais ilhas da civilização foi tomada por refinarias que tornaram o local inóspito e praticamente inabitável. Em decorrência desse desenvolvimento industrial desenfreado, boa parte do povo da ilha vem se refugiando ilegalmente na capital ao longo dos últimos anos - e é daí que surge a tensão central.
Há aqueles que desejam a expulsão dos refugiados, e há quem lute pelos seus direitos na capital. Algumas facções veem o conflito como uma oportunidade de lucro, outras como um impulso para ascender politicamente. Por si só, a chegada massiva de estrangeiros na cidade já cria todas essas ramificações (e mais muitas outras!).
Ao pensar na tensão central da sua aventura, considere as reações de diferentes grupos de pessoas.
Como diferentes povos ou grupos sociais reagem à tensão?
Como um determinado acontecimento modifica a influência política de grupos ou indivíduos?
O que cada um desses grupos buscaria explorar perante essa tensão? Que convergências e divergências de atitudes ela pode gerar?
A partir dessas reações e consequências, surgirão os ganchos para que você possa criar…
As Facções e Objetivos
Levando em conta as possibilidades oferecidas pela tensão central, é interessante criar cada facção a partir de um objetivo de longo-prazo. Esse objetivo representa algo que cada facção buscará cumprir ao longo de toda a história.
Seguindo o exemplo de Blades in the Dark, podemos ter facções com os mais variados objetivos:
Expulsar os refugiados da cidade;
Ascender politicamente para liderar a causa os refugiados;
Controlar o transporte ilegal daqueles que fogem para a capital;
Assumir a liderança da indústria das refinarias;
Derrubar o Conselho da Cidade e estabelecer uma reforma social.
E por aí vai! A partir de cada um destes exemplos, já seria possível criar uma facção - mais do que suficiente para umas boas sessões de jogo!
A partir dos objetivos de longo-prazo, também é possível visualizar potenciais alianças e rivalidades. A facção que quer estabelecer uma reforma social provavelmente terá conflitos de interesse com aquela que pretende expulsar os refugiados da cidade. Ao mesmo tempo, quem controla o transporte ilegal dos refugiados pode se aliar àquelas que visam assumir a liderança das refinarias.
Agora que você já sabe como cada facção se encaixa na tensão central, precisamos dar um zoom e pensar nos…
Métodos e Identidade
Os métodos de uma facção representam as ações tomadas a médio e curto-prazo. Se uma facção deseja assumir o controle das refinarias, como isso será feito? Podem organizar uma operação para sequestrar o atual chefe da indústria e exigir o controle como resgate; ou utilizar de espionagem e influência política para descobrir informações comprometedoras sobre a indústria.
Conhecer os métodos da facção é fundamental para que ela comece a criar identidade. Uma facção formada pelo povo da cidade provavelmente agirá de forma muito diferente de uma família nobre ou de um grupo de mercenários. Não só isso: mercenários podem ser tanto assassinos quanto contrabandistas e, por isso, terem métodos muito distintos.
Pensar nessas ações de curto-prazo também é interessante a fim de que cada objetivo gere um outro objetivo menor. Para organizar uma operação de sequestro, por exemplo, precisarão encontrar especialistas; para isso, deverão sabotar o negócio dos atuais contratantes desses especialistas; mas não poderão fazer isso sem um bom fornecedor de explosivos; e assim por diante!
Ao criar uma facção, não é necessário elaborar todo o curso de ação que será tomado. Um objetivo maior e uma ação a curto-prazo já são o suficiente para desenvolver a parte mais importante:
O Envolvimento das Personagens
Nenhuma dessas ideias tem sentido algum se o cenário não for projetado para interagir com as personagens dos jogadores! Por isso, tendo os objetivos das facções em mente, é necessário pensar na seguinte questão:
Onde os objetivos das facções interferem nos objetivos das personagens?
A maneira mais fácil de responder essa pergunta é visualizar o grupo de personagens dos jogadores como uma facção. O que o grupo pretende fazer a longo-prazo? E por quais meios estão buscando esse objetivo?
De alguma maneira, os objetivos de longo-prazo ou ações imediatas da facções devem se entrelaçar com a história das personagens, mesmo que de maneira indireta. Algumas facções podem vir a se tornar aliadas próximas das personagens, pois têm muitos objetivos em comum, enquanto outras podem cruzar seus caminhos de vez em quando. Haverá também rivais que agirão ativamente contra as personagens, pois tem metas totalmente opostas, e inimigos temporários, relacionados a objetivos mais imediatos.
Também é possível que, ao longo do caminho, aliados virem inimigos e vice-versa! Tudo depende das relações de interesses mais importantes no momento. Mesmo que não haja uma traição entre duas facções, acontecimentos externos podem interferir nos seus objetivos e forçar uma mudança.
O Cenário em Movimento
Para fazer com que todas essas considerações se transformem em uma experiência interessante na mesa de jogo, é importante desenvolver a noção de que o cenário não pode ser um ambiente estático. Como em um filme, enquanto o holofote está em uma cena específica, outras personagens estão agindo e interagindo “fora da tela”. Estão fazendo alianças, conduzindo suas próprias missões e buscando seus próprios objetivos ativamente.
Fazer com o que o cenário tenha esse “movimento próprio” ajuda (e muito) a criar a sensação de um mundo mais vivo e crível para os jogadores. Além disso, o que acontece “fora da tela” pode ser uma fonte inesgotável de novas consequências, desafios e novas tensões - ou, seja, combustível para criar novas histórias!
Uma das maiores lições que aprendi com John Harper em Blades in the Dark é que as consequências de uma ação sempre podem gerar novos pontos dramáticos que levarão a novas ações. Consequências e interesses são as chaves do “jogo das facções”.
Afinal, quando você é parte de uma facção, seja dos Elfo de Valfenda, da Ordem Jedi ou de uma gangue fajuta, o que você pensa sobre as outras facções é:
Como seus objetivos influenciam nos meus?
Espero que você tenha ótimas intrigas e momentos políticos no seu jogo! Fique à vontade para deixar seus comentários ou enviar uma mensagem!
E, como sempre,
Role dados. Conte histórias. Divirta-se!
Até a próxima!
Muito bom Henrique! Adorei as dicas, vão me ajudar a criar jogos de interesses mais complexos e que façam mais sentido. Obrigado!